"Pois a vida acolhe enquanto eu a observo."
Os
passos eram curtos e sem trajetória definida. Demonstravam mais do
caos do que da ordem, mas não se sentiam alarmados, sequer tinham
idade para isto, apenas desenhavam o seu andar meio a desajeitada
tela de pedaços de concreto. O equilíbrio coexistia junto à
carne, e os passos magistrais obtinham êxito em equilibrar-se na
extremidade da calçada.
Os
dias, os meses e o ano não surtiam efeito, não fazia sentido
contabilizar o tempo quando a ampulheta sequer existia. A única
regra era migrar de uma distração a outra até que chegasse à hora
de enfrentar os sonhos que oscilavam entre pesadelos e passagens
gratificantes. Logo após este ritual outro se iniciava, um novo dia
nascia, embora existissem alguns imprevistos a rotina era mais do que
certa. As tarefas mudavam, as pessoas mudavam, mas esta não.
De
pedras, jogos e passatempos a infância é feita, não tão simples
assim, porém plausível. Sequer existe o tempo, sequer defronta com
o tempo, sequer conhece o tempo.
Então
ela agarrou os seus fios de cabelos que estavam diante do sol, juntou
todos eles, deixou os ouvidos bem acomodados para que fossem capazes
de ouvir algo, então se agachou. Estava tentando escutar algo além
do concreto, porém ele permanecia em silêncio. Era curiosidade, a
vontade de saber se realmente existia alguém vivendo embaixo da
terra e se tal alguém realmente estava presente. A respiração era
repreendida no peito, lembrava-se daquilo que havia escutado de sua
mãe e de tantas outras pessoas, lembrava das criaturas que estavam
abaixo de todos e diziam que espreitavam na distância. Sem sucesso,
não ouviu nada, o concreto estava calado, as vozes vindas da terra
não se mostravam existentes.
Desistiu
de procurar o irreal e com um sorriso amplamente estampado na face
aceitou o mundano, um tipo de aceitação sem escolha. Ela sabia que
durante a noite, ou em alguma página de um livro familiar, existiam
coisas além de sua compreensão, estavam todas lá para serem
desvendadas. Bastava que fossem importunadas, criadas, imaginadas,
relembradas...
De
playground a playground buscando apenas a satisfação com devaneios,
jogando as cascas de bala ao chão e sentindo o sabor doce que a vida
mostra ser capaz de ofertar. Coleção de sorrisos, bons hábitos, e
mãos amigas a todo instante. Os dias são assim, sem muito
planejamento, mas uma dose intensa de espontaneidade sem escolha.
De
repente os sapatos ficam apertados, é necessária uma numeração
maior, alguns brinquedos passam a não ser capazes de distrair quanto
antes, o futuro é assim. Ordens como “não converse com
estranhos”, “olhe para os dois lados da rua” são uma
constante. Deve-se acatá-las. Senão é desobediência e junto a ela
coexiste a punição.
Há
uma velha que envolta em um manto oferta da sua ajuda. Sua mão
desconhecida quase sempre é deixada perante a companhia de moscas ao
relento. Criança nenhuma ousa tocar a estranha, muito menos manter
contato. Lembram-se dos castigos, das punições, das palavras de lei
que ressoam pela casa e são proferidas pelos monarcas. Então ela
desvia o olhar, fingi não ver aquela personalidade já desgastada, e
procura um amigo imaginário ultrapassado, faz este apelo, jan ao tao
comum assim nos dias de hoje, tal amigo só serve de distração em
momentos de constrangimentos. A velha parece não se importar, mas
sim entender, porém sem questionar, a escolha não foi dela.
A
vida, sempre modificando as leis de sua própria existência,
oferecendo amizades e inimizades, sempre onipresente e onipotente
acolhe a todos em sua nebulosa estadia.
Embora
as ilusões sempre presentes estas se cansam, no confronto com o dia
comum poucas conseguem sobreviver. São dignas de imortalidades
apenas no coração de poucos bem aventurados corações e férteis
mentes capazes de acolhê-las.
Ela
agora tenta se equilibrar assim como antes, mas esta tarefa é um
tanto árdua quando esta sobre um salto, tudo parece mais custoso,
seja no que diz respeito a equilibrar, tentar ou suportar.
Brinquedos
agora quando se quebram são deixados de lado, agora são mais
figurantes do que protagonistas. Mas ainda estão em palco, não tao
no centro assim, marcando nada mais do que presença, pois nem mesmo
distração podem ofertar, estão ultrapassados e não são capazes
de arrancar suspiros infantis como antes. Ainda respiram, uma
não-vida sustentada por lembranças e limitada a poeira sobre o
corpo.
É
outro momento, mas a velha esta a frente dela, oferece da sua mão
para que exista uma ajuda, mas ela não aceita, prefere o chão. Pois
sabe que alguém vai ajudar, pois sempre há uma mão amiga para tal
tarefa. A velha ciente do papel que deve desempenhar não mais
oferece da sua mão, mais se aproxima, acolhe a garota no colo, esta
sem escolher fica horrorizada com tamanha ousadia. Parece não
entender, mas aceita.
A
garota que esta sobre os braços fica em silencio, aquela que
empresta seus braços também. Não há diálogos, apenas há a troca
de olhares, tímidos olhares meio ao silêncio. A velha sabe que sua
hora ia chegar, mas a garota sempre tentou evitar, desta vez foi
inevitável, era necessário uma mão amiga quando ela caísse,
sempre foi, nos inúmeros acidentes. Da sua mão todas as crianças
estão destinadas a serem acolhidas, todas elas caem, até um ultimo
momento, após este, todas elas aprendem como devem se levantar, não
mais esperam por ombro amigo algum, mas sempre se lembram da ultima
pessoa que as ajudou; tal personalidade envolta no manto.
São
tempos um tanto distantes, sequer existem inúmeras mãos para ajudar
nas quedas, agora elas não são necessárias. Todas as crianças
crescem e sabem que não podem esperar por alguém para oferecer
ajuda. Estão prontas para viver em tantos pedaços, diante de
ferimentos e desgraças, sabem que a vida lhes acolhe, mas não
promete mil maravilhas, a não ser satisfação momentânea.
Eu sei
da veracidade de tal passagem, pois eu sou o Tempo, embora a oferta
de ajuda não parta da minha mão eu indico quem deve a fazer. A vida
sabe o momento em que a ajuda deve ser ofertada. Eu me calo. Lanço
um ultimo olhar a garota agora mulher de cabelo dourado. Faço tal
anotação para que eu mesmo não esqueça do meu trabalho, pois
ainda há de vir infinitos grãos de areia para eu contabilizar.
Nestas infinitas passagens devo lembrar quem sou eu. Sempre devo.
Também devo impedir que a vida me acolha, ou a velhice, se for o
caso. Enfim, não há diferença, pois tempo é tempo. E este sou eu,
sei a real capacidade que possuo, se torna válido manter a cautela.
Texto, Ítalo A. C. Freire (Escriba Odiado)